sexta-feira, 16 de junho de 2017

Andretti, Gurney, Foyt e os Ford em Le Mans 1967

Mário Andretti têm uma longa carreira no automobilismo, o suficiente para alcançar o estatuto de lenda ainda em vida, mas a sua maior frustração é Le Mans, pois nunca lá ganhou nos mais de trinta anos de tentativas que teve, desde os anos 60 até ao final do século XX, já depois de se ter retirado da IndyCar, em 1994. Teve sempre perto da vitória, especialmente em 1983 e 1995, nessas vezes com o filho ao seu lado, mas nunca conseguiu subir ao lugar mais alto do pódio e acompanhar Graham Hill na “Tripla Coroa”: Formula 1, 500 Milhas de Indianápolis e as 24 Horas de Le Mans.

Apesar disso, Andretti têm um vasto currículo na Endurance, com vitórias nas 24 Horas de Daytona e nas 12 Horas de Sebring, especialmente em 1970, onde conseguiu arrancar a vitória das mãos de Peter Revson… e do ator de Hollywood Steve McQueen, ambos num pequeno Porsche 908.

Dan Gurney é outro com longa carreira no automobilismo. Foi cedo para a Europa, e correu por onze anos na Formula 1. Correu na Ferrari, BRM, Porsche, Brabham, Eagle e McLaren. E tem a única proeza de ter sido o primeiro vencedor em três equipas: Porsche (em 1962, em França), Brabham (no mesmo lugar, dois anos depois) e com a "sua" Eagle, em 1967, em Spa Francochamps.

Construtor com mérito próprio, a bordo da All American Racers, que construiu o chassis da Eagle, venceu em ambos os lados do Atlântico, também vencendo na Can-Am e na USAC. Também foi o primeiro a usar um capacete integral num Grande Prémio de Formula 1, no GP britânico de 1968.

A.J. Foyt fez toda a sua carreira nos Estados Unidos. Venceu por quatro vezes as 500 Milhas de Indianápolis e correu até depois dos 50 anos, um pouco como Andretti, participando até ao incio dos anos 90. Mas Foyt fez em 1967 uma incursão única pela Europa, quando foi contratado pela Ford para fazer as 24 Horas de Le Mans, correndo ao lado de Gurney. A imprensa não gostou muito, porque ambos eram ferozes competidores e achavam que a parceria estava condenada ao desastre.  

Contudo, como agora faz 50 anos sobre a edição de 1967 das 24 Horas de Le Mans, seria bem interessante falar sobre a segunda edição onde os carros de Detroit dominaram o automobilismo contra os Ferrari e uma potência em ascensão: a Porsche.

Primeiro que tudo, Nigel Roebuck, jornalista da revista britânica Motorsport, considera que as 24 horas de Le Mans desse ano são consideradas como as melhores de sempre. A razão era simples: a concentração de estrelas de Formula 1 e das competições americanas. Se havia todos os grandes pilotos de então – desde Bruce McLaren a Graham Hill, passando por Dan Gurney, Mike Parkes e outros – aliás, direi que o único que não estava ali era Jim Clark, simplesmente porque o escocês odiava a prova – do outro lado do Atlântico estavam pilotos como A.J. Foyt e Mário Andretti, que na altura um jovem promissor, que doze anos antes tinha vindo de Itália com a família em busca de uma vida melhor, e que tinha encontrado a sua felicidade no automobilismo.

Ainda faltava muito do que alcançou na sua carreira – as vitórias em Indianápolis, os campeonatos USAC e CART, a sua carreira na Formula 1, o seu título mundial – mas no inicio desse ano, conseguira algo raro: vencer a Daytona 500, com pouca experiência na NASCAR. 

Mas a concorrência não era só Ford, Ferrari e Porsche. Havia mais gente: Chaparral, outra construtora americana que construía carros avante no seu tempo; Lola, Matra e Mirage, entre outros. Gurney e Foyt – em 2017, a dupla mais antiga ainda viva – corriam num carro de 7 litros, uma evolução do GT40, numa altura em que ambos já eram lendas. Foyt, pelas suas vitórias nas 500 Milhas. Gurney, por causa da Eagle, que o fazia passar por piloto e construtor, o mesmo estatuto que tinham Bruce McLaren e Jack Brabham. E outros ainda iriam passar nos anos 70, como John Surtees, Graham Hill e Emerson Fittipaldi.

Naquele ano, Andretti correu com um dos Ford, o numero 3, ao lado do belga Lucien Bianchi. Ele já tinha corrido no ano anterior, também com Bianchi, mas não tinha chegado ao fim. E nessa altura, já tinha ficado com uma ideia do que era aquele local e os perigos que o rodeavam.

"Você sabe, o fator de segurança - não que nós, em qualquer lugar que corrêssemos, fosse assim - mas havia alguns lugares que eu tomava um aviso especial. Havia a [seção] da Maison Blanche, antes que [o substituíssem] pelas Curvas Porsche, E nós estávamos atravessando aquela ponte sem proteção... Quero dizer, se você cometesse ali [um erro], você estava morto. Era simplesmente incrível. Sempre estava nebuloso lá à noite por causa do rio. E de todas as coisas, tinha que haver nevoeiro precisamente naquele local".

Os Mark IV do GT40 eram a evolução do carro que tinha ganho em 1966. O carro começou a ser testado ainda em 1965, mas os testes começaram em meados de 1966, depois de terem ganho em La Sarthe. A traseira era diferente, e isso causa instabilidade. Tanto que em julho desse ano, Ken Miles sofreu um acidente de testes em Riverside e acabou por morrer.

A traseira foi redesenhada, e o MKIV estava pronto para correr em Daytona, no inicio de 1967. Foi um fracassso: os seus carros inscritos sofreram problemas na caixa de velocidades e os Ferrari triunfaram em toda a linha, com Lorenzo Bandini e Chris Amon a subirem ao lugar mais alto do pódio. Claro, Henry Ford II (o Deuce) ficou embaraçado e fez de tudo para que isso não acontecesse, especialmente nas provas seguintes: Sebring, e particularmente, Le Mans.

Havia doze carros carros inscritos, oito MKIV e mais quatro MKII, vencedores em 1966. O carro de Andretti e Bianchi tinha sido inscrito pela Holman & Moody, enquanto que outro dos carros era inscrito para A.J. Foyt e Dan Gurney. Foyt, que nunca tinha corrido na Europa, detestou de imediato o local e não entendeu o fascínio que o resto do mundo - incluindo muitos dos seus compatriotas - tinham por aquele lugar. Isso foi mais do que suficiente para que Gurney ficasse preocupado com o seu companheiro de equipa. Logo, Gurney - que estava ali pela décima vez - decidiu ser prudente.

"A ideia de que tínhamos sido votados como a dupla menos provável de ter sucesso foi ainda mais uma razão para desenvolver nossa estratégia", observou Gurney numa entrevista à Motorsport em 2013. "Na verdade, eu disse para mim mesmo: 'não irei puxar muito este carro'. A corrida de 1967 foi a minha décima tentativa, e acho que, pela primeira vez, fomos como se fosse um concurso de resistência ao invés de uma corrida [de pedal a fundo]"

"O calcanhar de Aquiles era o fato de que o carro ser muito pesado", observou Dan. "Foi-nos dito que tinha mais de 3000 libras, embora a ficha especificasse que pesava 2600 libras. Tinha quase 500 cavalos de potência e ultrapassou as 330 quilómetros por hora em Mulsanne e quando você chegava à volta de 90 graus no final da linha reta [Arnage], levava uma travagem séria. Se você tomasse uma tática de qualificação ou sprint, você destruiria os travões. Eles teriam desaparecido numa hora e você teria que os substituír."

"A única maneira era travar mais cedo, provavelmente mais de 50 metros antes, e fazê-lo suavemente. Eu não metia qualquer marcha até que o carro tivesse abrandado talvez 80 km/hora apenas através de arrasto. Então eu aplicava os travões e metia a marcha normalmente. Essa técnica poupava nos travões."

"A.J. não queria se envolver no set-up do carro. Ele dizia: 'Faz isso'. Então eu trabalhei com Ron Butler, nosso mecânico-chefe e o carro estava bom. Trabalhei no spoiler traseiro, o que foi bastante crítico. Você queria apenas apertar o suficiente para torná-lo plano através da torção, sem perder muita velocidade direta. Finalmente, acabou por ficar tudo bom, com uns ajustes aqui e ali", concluiu Gurney.

A corrida começou com o Ford de Mark Donohue e Bruce McLaren na frente, mas cedo ficou para trás. Gurney ficou com o primeiro posto, mas era acossado por Andretti, e a partir dali, houve um duelo entre os dois, apesar do problema que Andretti sofria por causa da caixa de velocidades. Ao longo da noite, os quatro pilotos duelaram pela liderança, e no inicio da manhã, Andretti estava na frente de Foyt, o que lhe deixou zangado. Ele exigiu que existisse ordens de equipa, para que ficasse na primeira posição, com o jovem italo-americano em segundo.

No meio disto tudo, os mecânicos que cuidavam do carro de Mário tiveram de trocar de travões, que estavam desgastados com o uso. Só que com o adiantado da hora, cometeram-se erros, e não colocaram todos os elementos dos travões no carro. quando ele entrou no carro e colocou o pé no devido pedal na Curva Dunlop, acabou a bater na parede, com o carro danificado e algumas costelas quebradas no jovem piloto. O acidente acabou por fazer despistar os MKII de Jo SchlessserRoger McCluskey, que acabaram a corrida por ali.

Pior, pior, foi o socorro a Andretti. Em 1967, isso ainda estava na infância - quem se recorda do socorro a Jackie Stewart no GP da Bélgica do ano anterior tem um excelente exemplo de como era - e houve um espectador que, ao vê-lo no chão, decidiu agarrá-lo, desconhecendo que estava magoado nas costelas! McCluskey enxotou o espectador, e queria levá-lo para o posto médico da Ford, mas entretanto chegou o socorro local, que o queria levar para o hospital do circuito. Para evitar isso, McCluskey entrou na ambulância... e deitou fora as suas chaves! Ele acabou por ir ter com o médico da Ford... mas levado ao colo do seu companheiro de equipa.

Claro, Gurney e Foyt ficaram com o comando. O Ferrari de Mike Parkes e de Ludovico Scarfiotti ameaçou a liderança, mas cedo, ambos ficaram na frente da corrida. Foyt correu de noite a uma certa altura, porque... não encontravam Gurney! A razão era simples: ele queria que guiasse de noite, nas horas mais perigosas, que eram de manhã, porque era para ver se aprendia por ele mesmo a guiar naquelas condições, porque como detestava tanto aquela pista que... guiara apenas dez voltas.

Outro episódio acontecera depois de encontrarem Gurney: Parkes, a certa altura, estava atrás de Gurney e piscou as luzes, como que a indicar que queria ultrapassar, desconhecendo, talvez, que já tinha dado uma volta a ele. Contudo, ele exagerou nas luzes a certo ponto que Gurney decidira parar o carro em Arnage, com Parkes a parar atrás dele! Ficaram assim por uns momentos, no escuro, até que o piloto da Ferrari chegou à conclusão que a provocação não iria resultar. Ambos arrancaram dali, e seguiram até ao fim, com o americano em primeiro e o britânico em segundo.

No final, houve a famosa cerimónia do champanhe. Gurney viu o presidente da Ford, bem como Carrol Shelby e as suas mulheres, bem como os fotógrafos e restantes membros da imprensa, e achou por bem espalhar o conteúdo do champanhe nas pessoas, um pouco como que a dizer que a vitória também pertencia a eles.

E não era uma vitória qualquer: era a primeira (e única vitória até hoje) de uma dupla americana, numa equipa americana, num chassis americano, com motor americano, em Le Mans. E para além disso, era a primeira grande vitória de um carro americano em solo europeu desde Jimmy Murphy em 1921 no GP de França, a bordo de um Dusenberg. E ninguém saberia que exatamente uma semana depois, Gurney repetiria o feito no GP da Bélgica em Spa-Francochamps, no seu Eagle.

"Nós estávamos lá no pódio e eles nos entregaram uma garrafa de champanhe. Os fotógrafos abaixo de nós estavam olhando com expectativa e a coisa clicou. Eu pensei: 'Como eles também podem participar disso?' Eu pensei: 'Por que não?' E usei o champanhe como uma mangueira para pulverizar os fotógrafos. Eu acho que eu também consegui Henry e Mrs Ford! Ela não achou que fosse tão engraçado quanto o resto de nós. Foi um espetáculo do momento, uma dessas coisas que não acontecem muitas vezes na vida", contou Gurney.

A garrafa acabou nas mãos de um fotógrafo da Life, Flip Schulke, que o guardou por muitos anos, como... suporte de lâmpada, até ao dia em que devolveu a Gurney. Hoje em dia, está na casa dele, como objeto de memorabilia desse dia e da sua carreira. E de como começou uma tradição que é continuada nos dias de hoje.

Quanto a Foyt, nunca mais se lembrou de voltar à Europa, e vive bem com isso. Já Andretti, deixou Le Mans de lado por muitos anos, concentrado na USAC e depois na Formula 1. Somente em 1983, quando o seu filho Michael se meteu no automobilismo, e ele tinha encerrado a sua longa carreira na categoria máxima do automobilismo (passagens por Lotus, March, Ferrari, Parnelli, Alfa Romeo e Williams, entre 1968 e 1982), é que voltou a La Sarthe, pois era a vitória que faltava para poder reclamar que tinha ganho a "tripla Coroa". Andou perto em 1983, onde foi terceiro, sexto em 1988 (com o seu filho Michael e o seu sobrinho John) e segundo em 1995, onde ganhou na classe. E tentou até ao ano 2000, aos 60 anos de idade, esperando alcançar esse feito.

"Havia algo sobre tudo isso que realmente me atraíu", disse Andretti em 2016 a Marshall Pruitt, da Road & Track. "O ambiente, tudo o que tem. É realmente um dos clássicos de que você quer fazer parte. Apreciei cada evento. Todos os que eu fiz. Ele por vezes me chutou para fora, cometi alguns erros também que causaram isso. Mas é a vida", concluiu.

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